OS LEIGOS (e os patrões) não entendem por que a Justiça do Trabalho protege tanto o trabalhador. É comum ouvir dizer que “o trabalhador sempre ganha as demandas na Justiça do Trabalho”. Dizem que as reclamações trabalhistas feitas pelos trabalhadores, mesmo aquelas demandas destituídas de qualquer fundamento jurídico, sempre acabam beneficiando o empregado reclamante em prejuízo do patrão.
Por essa razão, afirma-se que a Justiça do Trabalho nunca é imparcial. Dizem que ela só protege o trabalhador e que este sempre acaba “ganhando alguma coisa”, mesmo quando não tem nenhum direito a reclamar. Mas será que isso é verdade mesmo? Será que o direito e a Justiça do Trabalho sempre protegem o empregado, prejudicando o empregador?
Comecemos pelo começo. O nosso primeiro código trabalhista, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi instituído através de um decreto-lei em 1943, por Getúlio Vargas, que então era considerado o “pai dos pobres”. Daí, talvez, o paternalismo do direito trabalhista brasileiro, implantado no país por um “paizão” que se inspirou na “Carta del Lavoro” da Itália de Benito Mussolini.
De começo, já podemos descobrir uma espécie de manobra desse “paizão” dos trabalhadores contra os próprios trabalhadores. Ou seja, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) se aplicava apenas aos trabalhadores urbanos, e não aos rurícolas. Se considerarmos que na década de 40 a maioria da classe trabalhadora era composta de trabalhadores rurais, já podemos concluir que o tal “pai dos pobres” avançou com a legislação trabalhista, mas não muito, não tudo.
Se foi assim (e foi), deve-se concluir que esse paternalismo do direito trabalhista no Brasil rural dos anos 40 já começou muito mal, pois começou protegendo uma minoria de trabalhadores urbanos, justamente para não onerar a maioria dos patrões que naquela época eram os fazendeiros, os donos de terras, os latifundiários etc. Cadê então o paternalismo do direito trabalhista que só aproveitava à menor parte da classe trabalhadora?
E hoje, a Justiça do Trabalho continua sendo paternalista, parcial ou protetiva dos direitos da classe trabalhadora, como têm afirmado os leigos, os empregadores reclamados e o “senso comum” em geral? Digo que a Justiça do Trabalho às vezes é mesmo paternalista, protetiva e assistencialista. Mas o é apenas quando estão em jogo algumas migalhas de direitos dos trabalhadores. E esse alegado “paternalismo” ocorre, a meu ver, por três razões básicas.
A uma, porque é impossível aos juízes do trabalho não enxergar a fragilidade dos reclamantes, o natural desnível sócio-econômico entre reclamante e reclamado, bem como o conflito distributivo que está por trás da maioria das demandas trabalhistas – a imensa maioria dos empregados é hipossuficiente em relação à imensa maioria dos patrões.
A duas, porque aos juízes do trabalho é impossível não enxergar que os trabalhadores têm uma enorme dificuldade de provar os seus direitos, já que a documentação deles está sempre nas mãos do empregador ou simplesmente não existe, o que torna os seus direitos sempre muito frágeis, sem contar a fragilidade da legislação trabalhista que encolhe cada ves mais com as terceirizações, as desregulamentações etc.
E, finalmente, porque é impossível aos juízes do trabalho não enxergar a mais-valia que é extraída do trabalhador ao longo do cumprimento do contrato de trabalho, pois o salário, fixado de antemão pelas leis de mercado, e não pela negociação livre entre empregado e empregador, jamais remunerou adequadamente o trabalho.
É sempre relevante lembrar que essa mais-valia, ou sobretrabalho, não é uma invenção marxista. Os economistas clássicos, Adam Smith e David Ricardo, muito antes de Marx, já haviam descoberto que a lógica da sociedade capitalista, bem como o lucro dos proprietários dos meios de produção, repousa justamente no trabalho que não é pago, ou seja, no trabalho que é extraído do trabalhador por meio de um salário que nunca corresponde ao pagamento dos dias efetivamente trabalhados.
Penso que são essas injustiças que algumas vezes levam os juízes do trabalho a tomar decisões paternalistas, protetivas e assistencialistas em favor dos trabalhadores. Mas, é exatamente esse “paternalismo assistencialista” que ajuda a manter a desigualdade entre patrão e empregado; é ele que “calibra” as tensões geradas por essa desigualdade e que, no final das contas, mantém tudo como está, ou seja, mantém a fragilidade do trabalhador, a lógica da mais-valia e a injustiça das desigualdades sociais.
E não há o que estranhar nisso tudo. Essa é a mecânica do mundo burguês. É assim mesmo que caminha a humanidade capitalista: nos termos da lei e sob o paternalismo conservador da Justiça, um paternalismo supostamente protetor!
JUSTIÇA DO TRABALHO É MUITO PATERNALISTA, DIZ NOVO PRESIDENTE DO TST
Poucos dias depois de assumir o comando do Tribunal Superior do Trabalho, o ministro Ives Gandra Filho declarou ao jornal O Globo que a Justiça do Trabalho ainda é muito paternalista, pois “dá de mão beijada R$ 1 milhão para um trabalhador”, por danos morais, quando não há nada previsto na legislação trabalhista sobre este tema.
O novo presidente também sinaliza divergir de colegas sobre a jurisprudência contrária à terceirização — no atual entendimento do TST, é impensável que um empregador subcontrate serviços de outras empresas para executar atividades essenciais.
“Não adianta ficar com briga ideológica de que não pode terceirizar na atividade-fim, só meio. Não existe mais a empresa vertical, em que você tem do diretor ao porteiro, todo mundo faz parte do quadro da empresa. Hoje, você funciona com cadeia produtiva. A gente precisa urgentemente de um marco regulatório.”
Em cenário de aperto na economia, Gandra Filho avalia que o governo federal deveria flexibilizar a legislação trabalhista e permitir que empresas e sindicatos possam fazer acordos fora da CLT, desde que os direitos básicos sejam garantidos. “A nossa Constituição prevê a flexibilização de direitos em crise econômica”, afirma.
Leia a entrevista:
O Globo — A decisão do STF que autoriza prisão após decisão de segunda instância se aplica à Justiça trabalhista?
Ives Gandra Filho — Esse princípio, aplicado na esfera criminal, tem que ser aplicado a todas as áreas, na Justiça do Trabalho e na Justiça Federal. A mesma coisa no setor privado e no setor público. Se a União está deixando de pagar precatório, se está enrolando demais, tem que dizer: olha, já teve duas decisões, você pode recorrer para ao STJ, ao STF, mas você vai ter que começar a pagar.
O Globo — O que precisa para ser aplicado às demais áreas?
Ives Gandra Filho — A decisão de um juiz ser revista por um tribunal. A partir daí, 3ª instância, 4ª instância, é só para ver se seu direito está sendo interpretado de forma uniforme em todo o país. O TST, o Supremo não têm que julgar todas as causas, não são tribunais de Justiça. A justiça se faz em duas instâncias e a uniformização é que se faz nos tribunais superiores. O que nós podemos fazer aqui no TST é interpretar os dispositivos que tratam dos recursos à luz dessa jurisprudência do Supremo. Ou seja, ser mais parcimonioso quanto a dar liminar ou cautelar suspendendo a execução.
O Globo — Já não é assim?
Ives Gandra Filho — Hoje, a execução antes do trânsito em julgado é provisória. Você pode chegar até a penhora. No caso do pagamento imediato, na maioria das vezes o trabalhador tem que pagar uma caução, porque se a situação se reverter, ele vai ter que devolver e aí diz que não tem condições porque já gastou tudo. O efeito da decisão do STF é que se vai começar a admitir que levante o dinheiro. No fundo, a gente vai ter que decidir, fazer adequações. Mas, de qualquer forma, se a 2ª instância referendou a decisão da 1ª instância, você já pode começar a executar.
O Globo — A medida poderá reduzir o tempo dos processos?
Ives Gandra Filho — Se um processo leva dez anos, cinco na primeira para a segunda instância e fica cinco parado aqui, você conseguiria um efeito imediato de reduzir esse tempo pela metade e depois esperaria para ver se referenda ou não. Acho que o mais importante não é a redução do prazo, mas a eficácia: botar o bandido na cadeia mais rápido ou então você receber mais rápido o que tem direito.
O Globo — A legislação trabalhista precisa de reforma?
Ives Gandra Filho — A gente tinha que ter era uma legislação trabalhista que pegasse fundamentalmente os direitos comuns a todos os trabalhadores, como 13º salário, férias, adicional noturno, de periculosidade, horas extras, FGTS e Previdência. O que diz respeito às condições específicas de cada categoria deveria ser na base de convenção e acordo coletivo, porque quem mais entende de cada ramo são eles (empresas e trabalhadores). Defendo a prevalência do negociado sobre o legislado, semelhante àquilo que o próprio governo soltou que foi o PPE (Programa de Proteção ao Emprego do Ministério do Trabalho).
O Globo — Mas o PPE não está impedindo as demissões.
Ives Gandra Filho — O problema é que o governo, do ponto de vista econômico, não tem mais confiabilidade. Por mais isenta que a presidente Dilma esteja hoje com tudo o que houve em termos de desmandos, houve opções erradas do governo, houve desgoverno e, por outro lado, há denúncias muito palpáveis de corrupção. No momento em que você perde a credibilidade, não adianta. Qualquer outro que ocupe o lugar dela agora contará com mais confiança da população do que ela. Lembro da época do Collor que, no final do governo, montou o ministério dos notáveis. Não deu para salvar, porque já tinha passado do limite.
O Globo — A reforma trabalhista poderia ajudar na crise? Como?
Ives Gandra Filho — Não só ajudaria, mas resolveria praticamente. Por exemplo, muitas empresas pagam o transporte do trabalhador (buscam e levam) e a Justiça do Trabalho entende que é o horário que você fica está à disposição e conta como hora extra, mesmo que você esteja sentado, não fazendo esforço, não produzindo nada. A empresa poderia sentar com o sindicato, dar algumas vantagens compensatórias e flexibilizar esse disposto da CLT, que fala do tempo à disposição do empregador.
O Globo — O que a própria justiça trabalhista poderia fazer para aliviar a crise?
Ives Gandra Filho — Discutir a jurisprudência. Este Tribunal pode colaborar mais ou menos com a superação da crise econômica, se levar em consideração o efeito que pode ter uma decisão no modelo econômico.
O Globo — Poderia dar um exemplo?
Ives Gandra Filho — Hoje você tem praticamente, em toda a reclamação trabalhista, pedido de indenização por danos morais. O simples fato de eu ter sido despedido me causou uma dor tão grande diz o trabalhador. E quem sai feliz despedido? Ninguém. Mas não há nada na legislação trabalhista sobre este tema. Você pega a legislação civil e começa aplicar na Justiça do Trabalho, sem parâmetros, sem critérios. O TST poderia criar esses parâmetros. Outro exemplo é ampliação da teoria do risco: você está indo para o trabalho no seu carro e vem outro e bate em você e você se machuca muito. Quem bateu? Um terceiro. Não é que o TST entende que é acidente de trabalho e a empresa fica responsável e tem que arcar com tudo, inclusive danos morais.Tem gente que ganha R$ 100 mil, R$ 500 mil. Virou uma loteria.
O Globo — A crise pode estimular acordos entre as partes?
Ives Gandra Filho — Sim. Em vez de impor às empresas determinadas decisões que terão um impacto muito grande, o juiz deveria tentar fazer acordo. Em dissídios nacionais, chego a gastar horas, mas eu fecho o acordo e, assim, consigo evitar a greve, como foi o caso mais recente dos aeronautas. A primeira coisa que um juiz deveria fazer é tentar conciliar, depois ele vai julgar. O TST pode começar a estimular as conciliações. O juiz pode ser promovido, quanto mais conciliações ele tiver.
O Globo — Os empregadores se queixam que a Justiça do Trabalho fica sempre do lado do trabalhador.
Ives Gandra Filho — A Justiça Trabalhista continua sendo muito paternalista. No mundo não é assim. Nos EUA, tem muito mais ação na base e a maior parte de resolve através de acordo, depois de uma primeira decisão. Aqui, no Brasil, você quer ir até o Supremo. Quanto mais paternalista, principalmente em época de crise econômica, menos você contribui para superá-la. A nossa Constituição prevê a flexibilização de direitos em crise econômica. Se você não admite essa flexibilização, pensa que está protegendo o trabalhador a ferro e fogo. É como se quisesse revogar a lei da gravidade por decreto, revogar a lei do mercado. Você vai quebrar a cara. Se você pegar algumas ações, não tem condição, a gente dá de mão beijada R$ 1 milhão para um trabalhador, que se trabalhasse a vida toda não ia ganhar aquilo.
O Globo —Mas a reforma trabalhista é tabu no governo do PT.
Ives Gandra Filho — Acho que os fatos vão pressionando de tal forma que, tanto a jurisprudência, quanto as decisões governamentais, como aconteceu com o PPE, caminham para mudanças. Esse governo foi o que bateu mais contra a prevalência do acordado sobre o legislado e esse programa é claramente de flexibilização, ao permitir redução de salário e de jornada para período de crise. Os fatos vão se impor.
O Globo — O TST tem se posicionado contra a terceirização na atividade-fim. Qual é a sua opinião?
Ives Gandra Filho — Não adianta ficar com briga ideológica de que não pode terceirizar na atividade fim, só meio. Não existe mais a empresa vertical, em que você tem do diretor ao porteiro, todo mundo faz parte do quadro da empresa. Hoje, você funciona com cadeia produtiva. A gente precisa urgentemente de um marco regulatório. A única coisa que não se admite é você ter duas pessoas trabalhando ombro a ombro no mesmo local, fazendo a mesma coisa, um sendo de uma empresa e outro de outra, um ganhando a metade do salário do outro.
O Globo — E sobre a decisão do governo de permitir o uso do FGTS como garantia no crédito consignado?
Ives Gandra Filho — A finalidade do FGTS é garantir [o sustento do trabalhador] durante um tempo depois da despedida. Já existem várias exceções para o saque, como doença grave, aposentadoria, compra da casa própria e, à medida que você vai abrindo exceções para uma série de coisas que não são aquelas pelas quais ele foi criado, na hora em que você precisar, não terá nada. Do ponto de vista jurídico, é mais uma exceção; do ponto de vista econômico, de racionalização do sistema, acho que, aparentemente ajudando o trabalhador, no fundo, você está prejudicando.
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